Após dois meses e meio de governo, nenhuma das medidas provisórias editadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começou a tramitar no Congresso Nacional. Entre as matérias, estão textos que organizam a estrutura do Executivo, dão base ao plano fiscal e estabelecem programas sociais.
Dentro do Congresso, os presidentes do Senado e da Câmara divergem sobre a tramitação. Enquanto Rodrigo Pacheco (PSD-MG) defende o retorno das comissões mistas para análises das MPs, Arthur Lira (PP-AL) quer a manutenção do modelo atual.
Governistas apontaram à CNN que o rito atual, sem as comissões mistas, dá mais poder a Lira e o deixa em posição favorável de negociação com o Planalto. Isso porque as MPs começam a ser analisadas direto no plenário da Câmara.
O cientista político Bruno Carazza diz que o impasse entre os presidentes e a demora para o início da tramitação das MPs apresenta um risco para a agenda de políticas públicas do governo.
“É uma disputa de poder dentro do Congresso. Mas o governo se torna refém desta discussão, porque suas medidas provisórias estão paradas até uma decisão sobre o rito de tramitação. É um risco para o governo e revela, mais uma vez, as dificuldades de Lula para coordenar o processo legislativo”, diz.
As MPs são normas do Executivo que têm força de lei quando publicadas. Porém os textos precisam ser aprovados pelo Legislativo em até 120 dias para não perderem efeito.
Petistas confirmam à CNN que o governo se preocupa com o impasse, conforme o tempo de validade das medidas corre.
Desde a posse do novo governo, em 1º de janeiro, o presidente Lula editou 11 medidas provisórias. Duas delas, porém, foram substituídas por MPs posteriores e não fazem mais parte da agenda. São elas as MPs 1.155 e 1.157, que tratavam do Auxílio Brasil e da desoneração dos combustíveis, respectivamente.
Confira abaixo as nove MPs de interesse do governo Lula, seus temas e prazos:
Para a pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos sobre o Congresso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Beatriz Rey, as MPs que organizam a estrutura do governo e as que compõem o plano do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para recuperação fiscal são as maiores preocupações e precisam ser aprovadas “o quanto antes”.
Três das nove medidas tratam da estrutura do novo governo. A MP 1.154 estabelece a estrutura da gestão, com 37 ministérios; a 1.156 extingue a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e transfere suas atividades a outros órgãos.
Já a MP 1.158 transferiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que atua na prevenção e combate à corrupção, para o Ministério da Fazenda. Parte da oposição questionou a retirada do mecanismo do Banco Central, autônomo, e a alocação em uma pasta do governo.
Duas das MPs fazem parte do pacote para aumento da arrecadação e recuperação fiscal, proposto por Haddad no início do governo.
A MP 1.160 restabelece o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) — permitindo que representantes da Fazenda Nacional possam desempatar as votações a favor da União. Já a MP 1.159 retira receitas referentes ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo do PIS/Pasep e da Cofins.
Fernando Meireles, pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta que a falta de avanço na tramitação destes textos, além de colocar em risco o plano do governo para o fiscal, impacta o sentimento do mercado financeiro em relação à gestão de Lula.
“A pauta econômica é um pouco mais grave, porque ela sinaliza coisas para o mercado, ela tem função de alinhar as expectativas e dar respaldo para a gestão de economia”, aponta o especialista.
As MPs 1.162 e 1.164 são vitais para a agenda social do governo, de acordo com os especialistas consultados. Enquanto a primeira traz mudanças ao Minha Casa, Minha Vida, especialmente na faixa voltada à baixa renda, o segundo marca a volta do Bolsa Família, com o valor de R$ 600 e adicionais para núcleos com dependentes e gestantes.
Por fim, a MP 1.161 possibilitou a Lula definir a composição do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (CPPI) — o que levou o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, a presidir o órgão; a MP 1.163 retomou parcialmente a cobrança de tributos federais sobre a gasolina e o etanol.
Impasses no Congresso
Uma ala de senadores vem reforçando a pressão sobre o presidente da Câmara para que as comissões mistas retornem. O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) chegou a enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) um mandado de segurança contra Lira — que atua contra o retorno dos colegiados.
Ao comentar a queda de braço entre Lira e Pacheco, Fernando Meireles explica que o fato de Pacheco ser o presidente do Congresso o colocaria em posição mais confortável na hipótese de retorno das comissões mistas.
“A tramitação direto no plenário da Câmara dá mais poder a ele [Lira], porque ele concentra o poder de agenda e tem votos no plenário. Isso dá maior poder de manobra para ele negociar com o governo. Nas comissões mistas, há equilíbrio, mas, regimentalmente, o presidente do Senado [e do Congresso] tem muita influência”, explica.
Pelo rito atual, as MPs têm sido votadas diretamente no plenário da Câmara e, se aprovadas, seguem para o Senado. A reclamação dos senadores é de que a negociação do texto se dá majoritariamente na Casa Baixa, cabendo ao Senado apenas chancelar a proposta.
Esse rito, adotado durante o período mais crítico da pandemia para agilizar a tramitação de matérias enquanto as reuniões e sessões eram somente remotas, continua em vigor.
Como solução para o impasse, parte dos senadores sugere uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que mude o processo legislativo para MPs. A ideia seria as medidas tramitarem de forma alternada entre os plenários da Câmara e do Senado.
Segundo apuração da CNN, o presidente Lula disse a interlocutores que espera que o impasse seja resolvido ainda neste mês. A expectativa é de que Lira e Pacheco se reúnam nos próximos dias na tentativa de um acordo político.
Beatriz Rey destaca que a questão, além de travar a agenda do Executivo, impede que a base do governo seja testada. “A gente ainda não sabe sequer o tamanho da base do governo. Não foi possível colocar em teste”, diz.
Para Bruno Carazza, considerando a conjuntura, o “sofrimento” do governo ao se articular com o Congresso Nacional parece uma tônica que vai percorrer o governo Lula.
“Toda essa demora provoca muito desgaste para o governo e parece ser uma tônica desta nova legislatura. Todas as negociações do governo são tratadas com muito sofrimento, porque o governo não tem uma base sólida”, conclui.
Com informações de Gustavo Uribe, Basília Rodrigues, Tainá Farfan, Luciana Amaral e Gabriel Hirabahasi.
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